sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Na Contramão da Transparência

A CVM constitui-se hoje em importante pilar do nosso mercado de capitais e, consequentemente, do desenvolvimento econômico do país. Ao longo dos anos, sua atuação técnica, independente e, dentro de suas limitações, tempestiva, tem conferido uma credibilidade a nosso mercado que não está presente mesmo em juridições mais avançadas.

A credibilidade de elogios assim depende da isenção de quem os profere. Isto implica na necessidade de criticar quando necessário. É o que fazemos aqui, ao trazer o assunto do acesso dos investidores à lista de acionistas. E neste assunto a CVM infelizmente promoveu retrocessos gigantescos, que tem obstaculizado o trabalho dos investidores mais diligentes, incentivando o absenteísmo nas assembléias e os desmandos de administrações menos éticas ou zelosas.

O acesso à lista de acionistas é um mandamento legal, ético e prático. Legal por estar disciplinado de forma bastante generosa nos Artigos 100 e 126 da Lei das SA. Ético por ser importante componente da transparência – afinal, nada mais justo para o investidor do que a capacidade de conhecer seus sócios. E prático uma vez que se trata de material essencial para que o investidor possa exercer seus direitos políticos, comparecendo às assembléias, elegendo e monitorando os administradores em harmonia com os demais sócios.

Infelizmente, a CVM parece não ver as coisas desta maneira.

Desde 2009, em resposta a consulta formulada pela Amec e secundada pelo IBGC, a CVM tentou consolidar sua posição até então errática no que tange ao entendimento dos dois artigos legais que determinam o acesso à lista de acionistas. Em verdadeiro malabarismo jurídico, o regulador construiu teses que claramente extrapolam o que de outra maneira seria um dispositivo simples e direto: de que os acionistas têm direito a esta informação. A decisão daquele ano - reiterada em julgamentos posteriores e, mais recentemente, em Oficio Circular - procura diferenciar as motivações para os pedidos baseados nos Artigos 100 e 126. Enquanto que os últimos permanecem com guarida relativamente liberal, os primeiros sofreram restrições que os tornaram praticamente inviáveis. Não é por outra razão que não se tem conhecimento de pedidos baseados no Artigo 100 que tenham chegado à CVM desde 2009 e obtido decisão favorável aos investidores. Imagina-se que o número de pedidos negados privadamente seja ainda maior.

E por que isso é relevante ? Primeiramente porque os pedidos de lista de acionista com base no Artigo 126 possuem dois obstáculos importantes: devem se destinar a pedido público de procuração, e devem partir de investidores que possuam ao menos 0,5% das ações da companhia. Para uma empresa como a Petrobrás, por exemplo, significa um investimento de R$ 1,5 bilhões em ações da companhia. Quantos investidores podem de fato se candidatar a exercer este direito ?

Já o Artigo 100 não possui estes obstáculos. Sua redação fala no acesso “a qualquer pessoa”, bastando alegar “situações de interesse pessoal”. Admite-se que de fato se trata de uma péssima redação. Mas qualquer estudante primário irá concordar que o dispositivo é flagrantemente liberal. Mas não a CVM.

Com o pretexto de diferenciar os pedidos a serem atendidos pelo Artigo 100 ou 126 (que se referem a informações muito parecidas), o regulador restringiu a aplicabilidade do Artigo 100 a praticamente todas as utilizações práticas para um acionista interessado em monitorar diligentemente seus investimentos. No Oficio Circular 004, a CVM chega a dizer literalmente que os pedidos de lista de acionistas “com vistas a discutir temas ligados à companhia  e a participar de assembléias” não encontrarão guarida no dispositivo legal.

É como se, na visão do regulador, o Artigo 100 só devesse ser invocado para defender direitos perante o judiciário ou órgãos da administração pública. Restrição esta - frise-se - que não está escrita em nenhum lugar da lei !

A realidade é (ou deveria ser) muito mais simples. A lei regula dois tipos de listas de acionistas, sem endereços (100) e com endereços (126). No primeiro caso mantém sua finalidade muito ampla, enquanto restringe no segundo. Parece óbvio que articular-se para votar em assembléia é uma “situação de interesse pessoal”, e portanto justifica um pedido com base no Artigo 100, sem os endereços. Dizer o contrário é criar uma vedação artificial e falsa – distinguir algo que a lei não quis distinguir.

Ressalte-se que muitas empresas seguem fornecendo a informação quando solicitada, demonstrando não apenas respeito a lei, mas também respeito ao investidor. Outras, porém, delegam o assunto às bancas legais que fatalmente o atiram ao formalismo e à visão restritiva do regulador. Infelizmente, estas costumam ser exatamente as empresas que mais precisam de investidores ativos e aprimoramentos de governança corporativa.

A tentativa de pacificar a jurisprudência sobre este direito resultou em sua completa supressão. É uma decisão que colide frontalmente com toda a tendência mundial para uma maior transparência, investimentos responsáveis e diligentes. A CVM retira assim dos investidores uma ferramenta essencial para a defesa de seus direitos, protegendo os incumbentes e administrações encasteladas. Administrações estas que, diga-se de passagem, possuem acesso à informação (são seu depositário!), criando-se uma situação desigual em eventuais embates com investidores externos.

Não é esta a função da CVM. Pelo contrário: a lei que a criou determina expressamente que ela deve exercer suas atividades para o fim de, entre outros, proteger os investidores do mercado contra atos ilegais de administradores. Assim, torturar a lei para restringir um direito essencial como o acesso à lista de acionistas contraria a melhor exegese, a ética, a transparência, a equidade, e a missão da CVM.

A reversão deste entendimento é urgente para o bem de nosso mercado.