sábado, 14 de janeiro de 2012

O Bolsa Peitão

É um desafio a este escriba falar sobre o tema da reação do governo ao problema das próteses mamárias explosivas. Desafio pela obviedade, que ilustra a maneira típica como os problema são tratados no país.

A tônica do debate é colocada pelo post do Facebook que dizia que "é um absurdo o governo não trocar todas as próteses defeituosas". A premissa básica de frases como esta, assim como da reação das otoridades e mesmo da mídia é que cabe à viúva pagar a conta de tudo.

Dificilmente poderemos conceber decisão mais personalíssima do que a de turbinar os seios com fins estéticos. A mulher se submete ao risco de uma cirurgia invasiva, com anestesia total, sem que haja qualquer real necessidade que não a vaidade pessoal. Nenhum julgamento moral quanto à decisão: a premissa básica de um liberal é que os indivíduos podem fazer aquilo que bem entendem, desde que não prejudiquem a terceiros. Natural, portanto, que as cirurgias eletivas desta natureza sejam custeadas privadamente.

Mas o mecanismo deveria ser rigorosamente o mesmo para quaisquer riscos advindos desta decisão privada. E o atual problema com as próteses francesas é simplesmente um 'sinistro' decorrente da decisão de se submeter à cirurgia estética.

Que não se diga que a autorização da Anvisa determina que o governo pague a conta. O registro público não pode configurar-se como um seguro para uma atividade privada. Caso contrário, as consequências seriam desastrosas. Quando compro um carro, em conformidade com as regulamentações locais, e o registro em algum estado da federação, não estou recebendo automaticamente um seguro grátis. Se sofrer algum acidente, ou se for assaltado, o risco é meu. Parte disso pode até ser coberto pelo DPVAT - para o qual pago separadamente um prêmio - ou posso ser encaminhado para um hospital público em caso de acidente. Mas ninguém me dará um novo carro, se eu não tiver um seguro específico para isso.

As repercussões são infindáveis. Se eu perder dinheiro com ações adquiridas em ofertas registradas na CVM, tenho direito a reembolso do governo ? Se meu celular for vítima de um hacker, o governo deve me indenizar por meus prejuízos ? Dada a quantidade de coisas que demandam registro público no país, o entendimento que ele configure um seguro inviabilizaria rapidamente as contas públicas.

Mas aqui a questão parece feita sob medida para o populismo demagógico. Estamos falando de 20 mil mulheres - por definição de classe média ou média-alta - afetadas pelo produto defeituoso. Eleitoras. Formadoras de opinião. Junte-se a estas as centenas de milhares de turbinadas pelo país, que possuem todo incentivo para serem simpáticas à causa. Por fim, um triunvirato executivo feminino ativista que ocupa o mais alto escalão da República. Temos um prato cheio para a "boa vontade" dos políticos em resolver o pepino em que essas mulheres se meteram.

Louve-se a decisão, pelo menos 'nesse momento', de só autorizar as cirurgias pelo SUS para próteses de fato defeituosas. Pode-se construir um argumento de que, criada a emergência, seria papel do governo amparar. Mas para os casos de cirurgias estéticas, conceder nova prótese com dinheiro público é um descalabro. Pior ainda é 'negociar' com os planos de saúde para que eles também cubram as cirurgias. Ou seja: obriga-se uma relação contratual privada a cobrir de maneira retroativa um novo risco. Quem paga a conta ? Está estampado na capa do Globo de 14 de janeiro: todos aqueles que não colocaram silicone nos seios. O cidadão comum, a maioria silenciosa, que mais uma vez paga pela demagogia à brasileira. Eu e você.

Toda esta ópera bufa deveria levar a uma reflexão ainda mais importante: qual é o papel do sistema público de saúde no Brasil ? Estamos falando de uma rede de proteção social, que deveria prover serviços para aqueles que não podem pagar ? Ou devemos buscar um sistema europeu que leva o cidadão a considerar o provimento de serviços de saúde como uma obrigação do governo ? Não é preciso analisar muito profundamente a situação européia para compreender a enormidade dos custos do welfare state daquele continente e suas consequências - o que parece ainda mais inadequado para um país de recursos limitados e com necessidades básicas cavalares como o nosso.

Qualquer mulher que tenha R$ 10 mil ou R$ 20 mil para uma cirurgia plástica estética tem recursos suficientes para ter cobertura de um plano de saúde privado - ou ainda para adquirir um seguro específico para os riscos advindos da cirurgia escolhida. Tal seguro poderia mesmo se tornar obrigatório, atrelado à venda das próteses, uma vez que as pesquisas mais recentes de behavioral economics demonstram a dificuldade do cidadão em ser previdente quando necessário - principalmente se existe a perspectiva implícita ou implícita de que o governo vai acabar pagando a conta. A obrigatoriedade do seguro seria portanto um intervencionismo necessário para coibir as externalidades demagógicas de situações deste tipo.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Cojones

Em entrevista recente, o presidente da Alpargatas, Marcio Utsch criticou fortemente a política protecionista do governo. A declaração espantou e repercutiu, tendo em vista sua  dissonância com tudo o que sai do chamado ‘empresariado brasileiro’. Como normalmente acontece, ela atraiu comentários exaltados dos patrulheiros de plantão, em todo o espectro político nacional (link).

Mas acima do mérito de suas palavras, o executivo levantou a possibilidade de um debate que infelizmente ainda não decolou no país: qual o papel das lideranças empresariais no processo político e nas escolhas econômicas da nação ?

É muito raro vermos um empresário falar mal do governo. E não é por acaso. Vivemos num país onde o setor público absorve mais de um terço do que é produzido, e onde mais da metade do crédito disponível na economia é definido em última instância nos gabinetes de Brasilia, ao invés dos departamentos de análises de bancos privados. Um executivo que se opõe ao governo, nestas condições, pode fazer muito mal à saúde de sua empresa. Silenciam, portanto, por timidez e até mesmo medo. Mas um medo justificável por seu ofício. O mandato destes executivos determina que tenham um dever fiduciário com as suas organizações. E se opiniões pessoais expressas publicamente puderem trazer consequências negativas para as empresas que pagam seus salários, temos uma quebra deste dever fiduciário. Não podemos, por exemplo, condenar os ‘conselheiros representantes dos minoritários’ da Petrobrás por terem compactuado com a malfadada capitalização da empresa, uma vez que os mesmos possuiam deveres fiduciários em relação às suas próprias organizações - no caso, Gerdau e Santander (pode-se questionar se deveriam ter aceito a incumbência, mas esta é uma outra discussão).

Estamos então condenados a conviver com empresários coniventes (na melhor das hipóteses) ou bajuladores das autoridades e de suas políticas, por mais equivocadas que sejam ? Hoje sim, mas não deveria ser assim.

Em recente debate do 12º Congresso do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (link), o presidente do Instituto Português da Empresa Familiar, Peter Villax, lançou um apelo às lideranças corporativas para que saiam de seus confortáveis casulos e venham participar de ‘coração aberto’ do debate sobre políticas públicas. Ao contrário das tradicionais manifestações subservientes do empresários, uma visão crítica e construtiva desta categoria da sociedade é fundamental para que as políticas públicas sejam moldadas no sentido adequado. Aqueles que criam empregos, riqueza e inovação são os maiores interessados em que o setor público saia do círculo vicioso de decisões míopes e curtoprazistas, que obedecem somente ao ciclo eleitoral. Empresários que executam planos de 10 ou 20 anos precisam influenciar gestores públicos, que não conseguem enxergar além dos quatro anos típicos de um mandato.

Mas como conciliar a necessidade de engajamento das lideranças empresariais com seus deveres fiduciários– principalmente em jurisdições como a nossa, onde os gestores públicos preferem publicidade a notícia (link), e onde o maniqueísmo distribui benesses aos amigos e condena os opositores ao jejum de verbas e contratos com o Leviatã ?

A resposta está – ou deveria estar - nas associações de classe. Sua razão de existir deveria ser a canalização de opiniões e do engajamento das lideranças empresariais em relação às políticas públicas. Infelizmente, no Brasil isso não acontece. O sindicalismo patronal é apenas mais um apêndice estatal que dá acesso a um ervanário público que vitamina ad eternum o custo-Brasil. Todas as federações, confederações, sindicatos e associações parecem existir com o único benefício de adular os governantes, ou assegurar uma maior canalização de verbas públicas para seus constituintes. Assim como foi feito com os sindicatos de empregados, engesssados desde a CLT mas verdadeiramente estatizados pelas políticas públicas da última década, as entidades empresariais deixaram de ser parte da solução e se tornaram parte do problema. As mazelas envolvendo a Fiemg e o ministro Fernando Pimentel são um pequeno exemplo disso.

É fundamental que se encontrem veículos para expressar opiniões corajosas como aquelas do presidente da Alpargatas. Isso se refere não apenas ao setor público, como também às práticas corporativas – como fez o ex-presidente da Usiminas, Marco Antonio Castello Branco.

Só sairemos da atual ditadura do populismo quando empresários corajosos como estes encontrarem um canal efetivo para externarem suas idéias e influenciarem seus pares – e indiretamente o governo. Para isso acontecer, a maioria silenciosa de empresários do bem precisa se engajar.

Empresários brasileiros, uni-vos! Vocês não tem nada a perder a não ser as correntes que emperram o progresso.

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

A Pedra Filosofal de Brasilia

Nos idos do ano 2000 o Banco Central editou uma importante regra, que limitava o investimentos dos bancos em ativos imobiliários e participações societárias. A motivação era clara: faz muito pouco sentido que estes ativos, que não possuem liquidez, possam de fato servir de lastro para instituições que captam depósitos de curto prazo. Em caso de uma corrida bancária, ativos imobiliários certamente não podem ser liquidados de maneira ordenada. O mesmo pode ser dito de participações acionárias em empresas da chamada “economia real”. Ainda que se trate de empresas negociadas em bolsa, seu valor de liquidação e a liquidez dos mercados subjacentes também coloca em risco a solvência das instituições financeiras.

A regra tinha pelo menos mais duas preocupações. Primeiro, é natural o conflito de interesses existente entre um banco e suas eventuais coligadas de outros setores. Como agiria a administração de um banco, se a sua subsidiária estivesse em risco de não pagar empréstimos ? Daria fôlego à mesma ? Adicionalmente, a existência de complexos industriais capitaneados por bancos é uma receita para o desastre – como bem mostrou o exemplo do processo de privatização mexicano. Os bancos privatizados serviram-se de seu balanço para adquirir ainda mais empresas privatizadas, criando mega grupos baseados em baixíssima base de capital real. Outros países também tiveram problemas com a opacidade criada por ativos bancários sem liquidez.

A medida do Banco Central teve um aspecto claramente prudencial (palavra da moda!), e sem dúvida melhorou a solidez do nosso sistema financeiro. Vários bancos venderam suas agências, e retiraram de seus balanços importantes participações em sociedades, com o maior exemplo tendo sido a cisão do Bradesco que criou a Bradespar como veículo para a posição de controle na Vale e outras posições acionárias.

Infelizmente, nossos sábios gestores da coisa pública parecem não concordar com esta análise. Acabam de divulgar mais um capítulo da série “como criar dinheiro do nada”. A pedra filosofal destes alquimistas é lapidada nas brechas da contabilidade pública, que permitem a recorrente ‘capitalização’ das entidades oficiais de crédito sem que isso afete as contas públicas. Os pormenores variam em cada safra, mas a última operação divulgada resume bem o espírito da coisa: a União Federal transferirá ações da Petrobrás em troca de novas ações da Caixa e do BNDES.

Estas instituições manterão estes papéis em seu patrimônio, provavelmente sem condições legais ou políticas de vendê-las. Ou seja, é um ativo tão produtivo quanto as agências bancárias que o mesmo governo fez os bancos venderem no passado. Mas ainda que não tenham qualquer utilidade prática, servirão para recompor os patrimônios de referência destas instituições, que tem se revelado sempre insuficientes para bancar a sanha expansionista do governo federal. Não é a toa que o crédito estatal representa mais que 40% do nosso mercado (e mais ainda incluindo os empréstimos mandatórios dos bancos privados), o que nos coloca em padrões socialistas na eficiência de alocação do capital.

Ao transferir, portanto, as ações de uma gaveta para outra, o governo sugere criar dinheiro, através da alavancagem das entidades de crédito. Joga-se fora assim toda administração prudencial dos últimos 15 anos, que procurou melhorar a qualidade dos balanços dos bancos e consequentemente nosso sistema financeiro como um todo. Se o objetivo fosse reduzir as diferenças que temos com países desenvolvidos, poderia parecer um passo inteligente. Mas nem mesmo o opaco e desfuncional sistema financeiro europeu aceitaria uma gambiarra dessas. Ou será que seria bem vista uma capitalização de um banco francês com ações da Airbus ?

É um absurdo que a contabilidade pública permita a capitalização infinita de instituições cujo fluxo de caixa também fica fora do cálculo do déficit público. Mais absurdo ainda é esta clara brecha contábil ser usada aos borbotões como temos observado nos últimos anos.

A transação não foi a primeira, e provavelmente não será a última. Ela equivale a continuar jogando os móveis da sala na lareira para manter o calor da sala de estar. Um dia acabam as cadeiras, e o fogo apaga. Mas aí, os “gestores da coisa pública” já estarão na planície, dando palestras sobre como criaram empregos como nunca antes na história deste país.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Inadimplência na Terra do Nunca

Em sua coluna publicada em 22/12 no jornal Valor Econômico, a jornalista Monica Izaguirre chama atenção para a baixa inadimplência das instituições oficiais de crédito (link). Ela sugere que o crescimento destas instituições, que aumentaram drasticamente sua participação no mercado de crédito nos últimos anos, teria diferença fundamental com relação a ciclos anteriores de crédito fácil, que sistematicamente acabaram em tragédia e quebras destas instituições, cujas perdas precisaram ser bancadas pelo governo federal. O assunto é muito pertinente, mas a conclusão da jornalista infelizmente é oposta à realidade. Coincidência ou não, é exatamente aquela que os 'gestores da coisa pública' querem fazer valer.

Apesar de toda a melhoria na gestão pública - em particular no Banco do Brasil, que tem ações negociadas no Novo Mercado da Bovespa - os gestores dos bancos oficiais não ficaram mais inteligentes ou escrupulosos do que seus predecessores. O que está acontecendo é exatamente uma reprise do mesmo filme, com alguns enredos adicionais.


Primeiramente, há que se compreender que ainda estamos em momento de expansão de crédito. Nesta fase do ciclo, é extremamente improvável que taxas de inadimplência mostrem a real situação financeira dos tomadores de crédito. No fim do dia, a capacidade de pagamento dos tomadores depende da qualidade do uso que foi dado aos recursos. E aqui, como veremos, as evidências não são positivas.

Também é preciso levar em conta - como a própria jornalista já menciona - que os créditos oficiais são extremamente subsidiados, tornando-os os últimos que um empresário em dificuldade deixará de pagar. O valor de manter as torneiras da viúva abertas é alto demais.

A única mudança fundamental que está acontecendo é no paradigma de agressividade da gestão dos bancos oficiais. Cada vez mais vemos um uso intenso da flexibilidade das normas contábeis para adiar os problemas. O combustível principal para isso é a capacidade de colocar dinheiro bom em cima de dinheiro ruim, como comprovam as seguidas necessidades de capitalização das entidades oficiais de credito. Trata-se de numa evidente reedição da conta-movimento do Banco do Brasil, de triste memória.

O disclosure dos bancos oficiais não permite uma investigação independente que confirme a qualidade de seus ativos e a taxa de inadimplência divulgada. Mas basta olhar para alguns exemplos de grande porte para perceber que a sujeira embaixo do tapete é grande.

Por exemplo: qual o prejuízo registrado pela Caixa com o investimento no Banco Panamericano? Zero. Foi tudo pra baixo do tapete, com a conivência privada do FGC e um cheque em branco para financiar a finada casa bancária com uma linha de crédito de mais de R$10 bilhões da sua sócia estatal.

E qual é o prejuízo registrado pelo BNDES nos mega empréstimos aos frigorficos? Zero. Se as empresas tem dificuldade, nada que uma nova capitalização ou debênture não resolva.

E com a Lupatech, que tem investimentos de capital e de dívida do BNDES e de fundos de pensão estatais, e cujos títulos negociam a percentuais ridículos do seu valor de face? Zero. Aliás, somos brindados com mais um press release da Avenida Chile, confirmando que continuará "apoiando" a antiga metalúrgica que se reinventou como um dínamo da indústria do petróleo.



Se estes poucos casos já saltam aos olhos, o que não dizer das dezenas de milhares de operações de crédito outorgadas nos últimos anos pelo aparelho estatal ?

A verdade virá à tona, mais cedo ou mais tarde, e será dolorosa. Mas neste momento os gestores que abriram as torneiras já não estarão mais por aí, e o problema cairá no colo de outros. Exatamente como no ciclo anterior. Os prejuízos reconhecidos na gestão FHC foram cozinhados nas gestões populistas de seus antecessores. É sempre assim.


É fundamental que as instituições oficiais reduzam sua participação no mercado de crédito para menos da metade dos valores atuais. A redução dos subsídios e da dívida pública que elas alimentam abriria espaço para reduções na taxa Selic, que afeta os indivíduos e os empresários que não são ungidos pela proximidade do poder. Chega a hora de terminarmos com esta política de Robin Hood às avessas, por meio da qual nosso governo tributa a patuléia para beneficiar grandes empresários.

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Na Contramão da Transparência

A CVM constitui-se hoje em importante pilar do nosso mercado de capitais e, consequentemente, do desenvolvimento econômico do país. Ao longo dos anos, sua atuação técnica, independente e, dentro de suas limitações, tempestiva, tem conferido uma credibilidade a nosso mercado que não está presente mesmo em juridições mais avançadas.

A credibilidade de elogios assim depende da isenção de quem os profere. Isto implica na necessidade de criticar quando necessário. É o que fazemos aqui, ao trazer o assunto do acesso dos investidores à lista de acionistas. E neste assunto a CVM infelizmente promoveu retrocessos gigantescos, que tem obstaculizado o trabalho dos investidores mais diligentes, incentivando o absenteísmo nas assembléias e os desmandos de administrações menos éticas ou zelosas.

O acesso à lista de acionistas é um mandamento legal, ético e prático. Legal por estar disciplinado de forma bastante generosa nos Artigos 100 e 126 da Lei das SA. Ético por ser importante componente da transparência – afinal, nada mais justo para o investidor do que a capacidade de conhecer seus sócios. E prático uma vez que se trata de material essencial para que o investidor possa exercer seus direitos políticos, comparecendo às assembléias, elegendo e monitorando os administradores em harmonia com os demais sócios.

Infelizmente, a CVM parece não ver as coisas desta maneira.

Desde 2009, em resposta a consulta formulada pela Amec e secundada pelo IBGC, a CVM tentou consolidar sua posição até então errática no que tange ao entendimento dos dois artigos legais que determinam o acesso à lista de acionistas. Em verdadeiro malabarismo jurídico, o regulador construiu teses que claramente extrapolam o que de outra maneira seria um dispositivo simples e direto: de que os acionistas têm direito a esta informação. A decisão daquele ano - reiterada em julgamentos posteriores e, mais recentemente, em Oficio Circular - procura diferenciar as motivações para os pedidos baseados nos Artigos 100 e 126. Enquanto que os últimos permanecem com guarida relativamente liberal, os primeiros sofreram restrições que os tornaram praticamente inviáveis. Não é por outra razão que não se tem conhecimento de pedidos baseados no Artigo 100 que tenham chegado à CVM desde 2009 e obtido decisão favorável aos investidores. Imagina-se que o número de pedidos negados privadamente seja ainda maior.

E por que isso é relevante ? Primeiramente porque os pedidos de lista de acionista com base no Artigo 126 possuem dois obstáculos importantes: devem se destinar a pedido público de procuração, e devem partir de investidores que possuam ao menos 0,5% das ações da companhia. Para uma empresa como a Petrobrás, por exemplo, significa um investimento de R$ 1,5 bilhões em ações da companhia. Quantos investidores podem de fato se candidatar a exercer este direito ?

Já o Artigo 100 não possui estes obstáculos. Sua redação fala no acesso “a qualquer pessoa”, bastando alegar “situações de interesse pessoal”. Admite-se que de fato se trata de uma péssima redação. Mas qualquer estudante primário irá concordar que o dispositivo é flagrantemente liberal. Mas não a CVM.

Com o pretexto de diferenciar os pedidos a serem atendidos pelo Artigo 100 ou 126 (que se referem a informações muito parecidas), o regulador restringiu a aplicabilidade do Artigo 100 a praticamente todas as utilizações práticas para um acionista interessado em monitorar diligentemente seus investimentos. No Oficio Circular 004, a CVM chega a dizer literalmente que os pedidos de lista de acionistas “com vistas a discutir temas ligados à companhia  e a participar de assembléias” não encontrarão guarida no dispositivo legal.

É como se, na visão do regulador, o Artigo 100 só devesse ser invocado para defender direitos perante o judiciário ou órgãos da administração pública. Restrição esta - frise-se - que não está escrita em nenhum lugar da lei !

A realidade é (ou deveria ser) muito mais simples. A lei regula dois tipos de listas de acionistas, sem endereços (100) e com endereços (126). No primeiro caso mantém sua finalidade muito ampla, enquanto restringe no segundo. Parece óbvio que articular-se para votar em assembléia é uma “situação de interesse pessoal”, e portanto justifica um pedido com base no Artigo 100, sem os endereços. Dizer o contrário é criar uma vedação artificial e falsa – distinguir algo que a lei não quis distinguir.

Ressalte-se que muitas empresas seguem fornecendo a informação quando solicitada, demonstrando não apenas respeito a lei, mas também respeito ao investidor. Outras, porém, delegam o assunto às bancas legais que fatalmente o atiram ao formalismo e à visão restritiva do regulador. Infelizmente, estas costumam ser exatamente as empresas que mais precisam de investidores ativos e aprimoramentos de governança corporativa.

A tentativa de pacificar a jurisprudência sobre este direito resultou em sua completa supressão. É uma decisão que colide frontalmente com toda a tendência mundial para uma maior transparência, investimentos responsáveis e diligentes. A CVM retira assim dos investidores uma ferramenta essencial para a defesa de seus direitos, protegendo os incumbentes e administrações encasteladas. Administrações estas que, diga-se de passagem, possuem acesso à informação (são seu depositário!), criando-se uma situação desigual em eventuais embates com investidores externos.

Não é esta a função da CVM. Pelo contrário: a lei que a criou determina expressamente que ela deve exercer suas atividades para o fim de, entre outros, proteger os investidores do mercado contra atos ilegais de administradores. Assim, torturar a lei para restringir um direito essencial como o acesso à lista de acionistas contraria a melhor exegese, a ética, a transparência, a equidade, e a missão da CVM.

A reversão deste entendimento é urgente para o bem de nosso mercado.

terça-feira, 27 de setembro de 2011

O Chamado aos Investidores - Bob Monks

Excelente palestra do Bob Monks na conferência do ICGN neste mês. São reflexões que valem para os investidores em qualquer lugar do mundo, inclusive no Brasil, tendo em vista a complacência dos atores com os vícios que ainda impedem nosso desenvolvimento sustentável. http://www.ragm.com/library/LAppel-ICGN-Paris

sábado, 24 de setembro de 2011

Lambança


Dentre os diversos atributos positivos da economia brasileira que o governo tem conseguido destruir, poucos se aproximam da escala desastrosa das medidas tomadas em relação à negociação de derivativos cambiais – a saber o IOF sobre as posições em futuros e a delegação ao CMN para estabelecer parâmetros de margem para este mercado.

Nos últimos anos, o mercado de capitais brasileiro se reinventou. Comecemos pelo mais visíviel – o mercado de ações. Até 1999 não tínhamos uma Bolsa de Valores digna deste nome. Tinhamos sim, um cassino ridículo onde se transacionavam ações como latas de sardinha, sem cumprir nem remotamente a função social de uma bolsa, que é canalizar a poupança privada para o setor produtivo. Vivemos deste então uma revolução liderada pelos investidores (e pela própria BMF Bovespa), que nos transformou numa das cinco maiores praças mundiais para captação de recursos de risco. O impacto desta transformação no crescimento do PIB foi fortíssimo, com a formalização de setores inteiros da economia (frigoríficos, construção,...) e viabilização de investimentos que não aconteceriam sem o mercado de capitais.

Qual foi a participação do governo neste processo ? Quase nenhuma. Em primeiro lugar não atrapalhou, mantendo os fundamentos de estabilidade econômica e a independência da CVM. Desfez algumas besteiras, como a CPMF sobre negociação de ações. Mas o apoio federal nunca foi de coração. Mesmo a aprovação da reforma da Lei das SA – peça fundamental nesta virada - foi sancionada pelo então vice-presidente da República, no exercício da presidência, o que demonstra a falta de prestígio do assunto entre nossos governantes.

A atividade regulamentar do Banco Central e da CVM também foi extremamente positiva, embora talvez um pouco exagerada em alguns momentos, e deficiente em outros (é assim mesmo). Por outro lado, o BNDES seguiu atuando como um competidor imbatível ao mercado de capitais, canalizando recursos subsidiados a grupos ungidos pelo conhecido dedazo.

Alongou-se o perfil da dívida pública criou-se um mercado de derivativos que também se encontra entre os cinco maiores do mundo. Mais ainda: este mercado se desenvolveu sobre as bases sólidas de uma regulamentação forte e técnica, com transparência e integração que simplesmente não possuem par no mundo. Juntamente com a regulação prudencial bancária, marcação a mercado, exigências de registro de derivativos e fundos de investimento (com cotas diárias), identificação do beneficiário final e outras características chatas aos leigos, podemos nos gabar de ter um dos mercados mais sólidos do mundo.

E é este edifício que o governo começa a desmontar. A imposição do IOF sobre derivativos cambiais inviabiliza completamente a negociação destes saudáveis produtos no mercado brasileiro. A miopia de penalizar a ponta vendedora de dólares tem o efeito de matar o mercado, e não de mudar a sua direção. Este fenômeno já ficou claro na época do terremoto japonês, quando investidores daquele país deixaram de vender ativos brasileiros e remeter dólares de volta porque sabiam que se voltassem teriam que pagar impostos novamente se voltassem.

Em recente palestra, importante autoridade do Ministério da Fazenda foi questionada se não temia exportar o mercado de capitais com as medidas recentemente tomadas. Depois de uma evasiva, a autoridade debochou da pergunta, dizendo: “Ah, o mercado de reais em Chicago é muito pequeno...isso não vai acontecer”.

Pois isto já está acontecendo, doutor!

A negociação com a moeda brasileira na CME já decolou – ultrapassa USD 100 milhões por dia (em julho era essencialmente zero). Ainda é pequena, mas o processo é lento. O problema é que ele não tem volta. Uma vez que os investidores tenham as contas, sistemas e processos para transacionar a moeda brasileira em Chicago, não haverá razão para trazê-los de volta. Ainda que se eliminem as perniciosas travas criadas, a ameaça de impedir a sacrossanta mobilidade de capitais atuará como uma espada de Dâmocles sobre o ambiente brasileiro de negociação.

Teremos então de fato exportado parcela significativa de nosso mercado, deixando o restante dele aleijado e ferido de morte na sua possibilidade de estabelecer-se como centro financeiro global. Possibilidade esta, diga-se de passagem, plenamente factível se houvesse um mínimo de sensibilidade no governo federal, dadas as vantagens regulatórias mencionadas acima, duramente construida com mais de uma década de suor.

E a morte do nosso mercado terá sido em vão, porque os esperados benefícios macroeconômicos não acontecerão. No mês de setembro, a moeda nacional se desvalorizou 14% frente ao dólar. Desde a flutuação do real em 1999, um movimento desta magnitude e desta velocidade só aconteceu 3 vezes – incluindo na eleição de Lula e na crise de 2008.

Pergunte a qualquer exportador o que acontece com o seu negócio com uma volatilidade destas. A resposta é simples: prejuízo. A exportação é caracterizada por longos ciclos de produção e venda (depende do segmento econômico). Um movimento cambial desta magnitude mata completamente a capacidade de planejamento da indústria – mesmo daquela que se beneficia com a desvalorização – e leva a prejuízos. Sem contar nos maiores custos de financiamento e hedge.

A violência do movimento do câmbio aconteceu porque o governo matou uma das pontas do mercado. Com isso matou o mercado. E ameaça ainda profanar o seu túmulo com o poder de interferir nas margens de garantias – o que deveria ser um parâmetro técnico e prudencial, e não uma ferramenta para impor a ideologia vigente ao condenado mercado de capitais.

Em prevalecendo esta ideologia, é melhor nos preparamos para voltarmos a ser um satélite das grandes praças globais de negociação de ativos.