Nos idos do ano 2000 o Banco Central editou uma importante regra, que limitava o investimentos dos bancos em ativos imobiliários e participações societárias. A motivação era clara: faz muito pouco sentido que estes ativos, que não possuem liquidez, possam de fato servir de lastro para instituições que captam depósitos de curto prazo. Em caso de uma corrida bancária, ativos imobiliários certamente não podem ser liquidados de maneira ordenada. O mesmo pode ser dito de participações acionárias em empresas da chamada “economia real”. Ainda que se trate de empresas negociadas em bolsa, seu valor de liquidação e a liquidez dos mercados subjacentes também coloca em risco a solvência das instituições financeiras.
A regra tinha pelo menos mais duas preocupações. Primeiro, é natural o conflito de interesses existente entre um banco e suas eventuais coligadas de outros setores. Como agiria a administração de um banco, se a sua subsidiária estivesse em risco de não pagar empréstimos ? Daria fôlego à mesma ? Adicionalmente, a existência de complexos industriais capitaneados por bancos é uma receita para o desastre – como bem mostrou o exemplo do processo de privatização mexicano. Os bancos privatizados serviram-se de seu balanço para adquirir ainda mais empresas privatizadas, criando mega grupos baseados em baixíssima base de capital real. Outros países também tiveram problemas com a opacidade criada por ativos bancários sem liquidez.
A medida do Banco Central teve um aspecto claramente prudencial (palavra da moda!), e sem dúvida melhorou a solidez do nosso sistema financeiro. Vários bancos venderam suas agências, e retiraram de seus balanços importantes participações em sociedades, com o maior exemplo tendo sido a cisão do Bradesco que criou a Bradespar como veículo para a posição de controle na Vale e outras posições acionárias.
Infelizmente, nossos sábios gestores da coisa pública parecem não concordar com esta análise. Acabam de divulgar mais um capítulo da série “como criar dinheiro do nada”. A pedra filosofal destes alquimistas é lapidada nas brechas da contabilidade pública, que permitem a recorrente ‘capitalização’ das entidades oficiais de crédito sem que isso afete as contas públicas. Os pormenores variam em cada safra, mas a última operação divulgada resume bem o espírito da coisa: a União Federal transferirá ações da Petrobrás em troca de novas ações da Caixa e do BNDES.
Estas instituições manterão estes papéis em seu patrimônio, provavelmente sem condições legais ou políticas de vendê-las. Ou seja, é um ativo tão produtivo quanto as agências bancárias que o mesmo governo fez os bancos venderem no passado. Mas ainda que não tenham qualquer utilidade prática, servirão para recompor os patrimônios de referência destas instituições, que tem se revelado sempre insuficientes para bancar a sanha expansionista do governo federal. Não é a toa que o crédito estatal representa mais que 40% do nosso mercado (e mais ainda incluindo os empréstimos mandatórios dos bancos privados), o que nos coloca em padrões socialistas na eficiência de alocação do capital.
Ao transferir, portanto, as ações de uma gaveta para outra, o governo sugere criar dinheiro, através da alavancagem das entidades de crédito. Joga-se fora assim toda administração prudencial dos últimos 15 anos, que procurou melhorar a qualidade dos balanços dos bancos e consequentemente nosso sistema financeiro como um todo. Se o objetivo fosse reduzir as diferenças que temos com países desenvolvidos, poderia parecer um passo inteligente. Mas nem mesmo o opaco e desfuncional sistema financeiro europeu aceitaria uma gambiarra dessas. Ou será que seria bem vista uma capitalização de um banco francês com ações da Airbus ?
É um absurdo que a contabilidade pública permita a capitalização infinita de instituições cujo fluxo de caixa também fica fora do cálculo do déficit público. Mais absurdo ainda é esta clara brecha contábil ser usada aos borbotões como temos observado nos últimos anos.
A transação não foi a primeira, e provavelmente não será a última. Ela equivale a continuar jogando os móveis da sala na lareira para manter o calor da sala de estar. Um dia acabam as cadeiras, e o fogo apaga. Mas aí, os “gestores da coisa pública” já estarão na planície, dando palestras sobre como criaram empregos como nunca antes na história deste país.