terça-feira, 27 de dezembro de 2011

A Pedra Filosofal de Brasilia

Nos idos do ano 2000 o Banco Central editou uma importante regra, que limitava o investimentos dos bancos em ativos imobiliários e participações societárias. A motivação era clara: faz muito pouco sentido que estes ativos, que não possuem liquidez, possam de fato servir de lastro para instituições que captam depósitos de curto prazo. Em caso de uma corrida bancária, ativos imobiliários certamente não podem ser liquidados de maneira ordenada. O mesmo pode ser dito de participações acionárias em empresas da chamada “economia real”. Ainda que se trate de empresas negociadas em bolsa, seu valor de liquidação e a liquidez dos mercados subjacentes também coloca em risco a solvência das instituições financeiras.

A regra tinha pelo menos mais duas preocupações. Primeiro, é natural o conflito de interesses existente entre um banco e suas eventuais coligadas de outros setores. Como agiria a administração de um banco, se a sua subsidiária estivesse em risco de não pagar empréstimos ? Daria fôlego à mesma ? Adicionalmente, a existência de complexos industriais capitaneados por bancos é uma receita para o desastre – como bem mostrou o exemplo do processo de privatização mexicano. Os bancos privatizados serviram-se de seu balanço para adquirir ainda mais empresas privatizadas, criando mega grupos baseados em baixíssima base de capital real. Outros países também tiveram problemas com a opacidade criada por ativos bancários sem liquidez.

A medida do Banco Central teve um aspecto claramente prudencial (palavra da moda!), e sem dúvida melhorou a solidez do nosso sistema financeiro. Vários bancos venderam suas agências, e retiraram de seus balanços importantes participações em sociedades, com o maior exemplo tendo sido a cisão do Bradesco que criou a Bradespar como veículo para a posição de controle na Vale e outras posições acionárias.

Infelizmente, nossos sábios gestores da coisa pública parecem não concordar com esta análise. Acabam de divulgar mais um capítulo da série “como criar dinheiro do nada”. A pedra filosofal destes alquimistas é lapidada nas brechas da contabilidade pública, que permitem a recorrente ‘capitalização’ das entidades oficiais de crédito sem que isso afete as contas públicas. Os pormenores variam em cada safra, mas a última operação divulgada resume bem o espírito da coisa: a União Federal transferirá ações da Petrobrás em troca de novas ações da Caixa e do BNDES.

Estas instituições manterão estes papéis em seu patrimônio, provavelmente sem condições legais ou políticas de vendê-las. Ou seja, é um ativo tão produtivo quanto as agências bancárias que o mesmo governo fez os bancos venderem no passado. Mas ainda que não tenham qualquer utilidade prática, servirão para recompor os patrimônios de referência destas instituições, que tem se revelado sempre insuficientes para bancar a sanha expansionista do governo federal. Não é a toa que o crédito estatal representa mais que 40% do nosso mercado (e mais ainda incluindo os empréstimos mandatórios dos bancos privados), o que nos coloca em padrões socialistas na eficiência de alocação do capital.

Ao transferir, portanto, as ações de uma gaveta para outra, o governo sugere criar dinheiro, através da alavancagem das entidades de crédito. Joga-se fora assim toda administração prudencial dos últimos 15 anos, que procurou melhorar a qualidade dos balanços dos bancos e consequentemente nosso sistema financeiro como um todo. Se o objetivo fosse reduzir as diferenças que temos com países desenvolvidos, poderia parecer um passo inteligente. Mas nem mesmo o opaco e desfuncional sistema financeiro europeu aceitaria uma gambiarra dessas. Ou será que seria bem vista uma capitalização de um banco francês com ações da Airbus ?

É um absurdo que a contabilidade pública permita a capitalização infinita de instituições cujo fluxo de caixa também fica fora do cálculo do déficit público. Mais absurdo ainda é esta clara brecha contábil ser usada aos borbotões como temos observado nos últimos anos.

A transação não foi a primeira, e provavelmente não será a última. Ela equivale a continuar jogando os móveis da sala na lareira para manter o calor da sala de estar. Um dia acabam as cadeiras, e o fogo apaga. Mas aí, os “gestores da coisa pública” já estarão na planície, dando palestras sobre como criaram empregos como nunca antes na história deste país.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Inadimplência na Terra do Nunca

Em sua coluna publicada em 22/12 no jornal Valor Econômico, a jornalista Monica Izaguirre chama atenção para a baixa inadimplência das instituições oficiais de crédito (link). Ela sugere que o crescimento destas instituições, que aumentaram drasticamente sua participação no mercado de crédito nos últimos anos, teria diferença fundamental com relação a ciclos anteriores de crédito fácil, que sistematicamente acabaram em tragédia e quebras destas instituições, cujas perdas precisaram ser bancadas pelo governo federal. O assunto é muito pertinente, mas a conclusão da jornalista infelizmente é oposta à realidade. Coincidência ou não, é exatamente aquela que os 'gestores da coisa pública' querem fazer valer.

Apesar de toda a melhoria na gestão pública - em particular no Banco do Brasil, que tem ações negociadas no Novo Mercado da Bovespa - os gestores dos bancos oficiais não ficaram mais inteligentes ou escrupulosos do que seus predecessores. O que está acontecendo é exatamente uma reprise do mesmo filme, com alguns enredos adicionais.


Primeiramente, há que se compreender que ainda estamos em momento de expansão de crédito. Nesta fase do ciclo, é extremamente improvável que taxas de inadimplência mostrem a real situação financeira dos tomadores de crédito. No fim do dia, a capacidade de pagamento dos tomadores depende da qualidade do uso que foi dado aos recursos. E aqui, como veremos, as evidências não são positivas.

Também é preciso levar em conta - como a própria jornalista já menciona - que os créditos oficiais são extremamente subsidiados, tornando-os os últimos que um empresário em dificuldade deixará de pagar. O valor de manter as torneiras da viúva abertas é alto demais.

A única mudança fundamental que está acontecendo é no paradigma de agressividade da gestão dos bancos oficiais. Cada vez mais vemos um uso intenso da flexibilidade das normas contábeis para adiar os problemas. O combustível principal para isso é a capacidade de colocar dinheiro bom em cima de dinheiro ruim, como comprovam as seguidas necessidades de capitalização das entidades oficiais de credito. Trata-se de numa evidente reedição da conta-movimento do Banco do Brasil, de triste memória.

O disclosure dos bancos oficiais não permite uma investigação independente que confirme a qualidade de seus ativos e a taxa de inadimplência divulgada. Mas basta olhar para alguns exemplos de grande porte para perceber que a sujeira embaixo do tapete é grande.

Por exemplo: qual o prejuízo registrado pela Caixa com o investimento no Banco Panamericano? Zero. Foi tudo pra baixo do tapete, com a conivência privada do FGC e um cheque em branco para financiar a finada casa bancária com uma linha de crédito de mais de R$10 bilhões da sua sócia estatal.

E qual é o prejuízo registrado pelo BNDES nos mega empréstimos aos frigorficos? Zero. Se as empresas tem dificuldade, nada que uma nova capitalização ou debênture não resolva.

E com a Lupatech, que tem investimentos de capital e de dívida do BNDES e de fundos de pensão estatais, e cujos títulos negociam a percentuais ridículos do seu valor de face? Zero. Aliás, somos brindados com mais um press release da Avenida Chile, confirmando que continuará "apoiando" a antiga metalúrgica que se reinventou como um dínamo da indústria do petróleo.



Se estes poucos casos já saltam aos olhos, o que não dizer das dezenas de milhares de operações de crédito outorgadas nos últimos anos pelo aparelho estatal ?

A verdade virá à tona, mais cedo ou mais tarde, e será dolorosa. Mas neste momento os gestores que abriram as torneiras já não estarão mais por aí, e o problema cairá no colo de outros. Exatamente como no ciclo anterior. Os prejuízos reconhecidos na gestão FHC foram cozinhados nas gestões populistas de seus antecessores. É sempre assim.


É fundamental que as instituições oficiais reduzam sua participação no mercado de crédito para menos da metade dos valores atuais. A redução dos subsídios e da dívida pública que elas alimentam abriria espaço para reduções na taxa Selic, que afeta os indivíduos e os empresários que não são ungidos pela proximidade do poder. Chega a hora de terminarmos com esta política de Robin Hood às avessas, por meio da qual nosso governo tributa a patuléia para beneficiar grandes empresários.